Parece um roteiro pré-determinado. Sergio Moro lidera um espetáculo
midiático na quinta-feira, com tempo de pegar os políticos de oposição
ainda em plenário. Na sexta-feira, a bomba vai para a manchete de todos
os jornalões. No sábado, para as revistas semanais. No domingo, chega ao
Fantástico.
E assim a semana se inicia sob fortíssimo bombardeio midiático.
Ninguém se preocupa com um detalhe: a delação premiada deveria ser
feita em sigilo absoluto, exatamente para não permitir que bandidos
confessos se utilizem desse instrumento para se vingar de seus
desafetos, ou pior, exercer ou traficar influência política.
Ao invés de me torturar lendo os espasmos golpistas dos jornalões,
passei a noite e a manhã de hoje, lendo um capítulo do livro As Origens
do Totalitarismo, de Hannah Arendt. É o capítulo que fala do Caso
Dreyfus, o oficial judeu condenado pela Justiça Francesa por alta
traição, mas que era inocente.
Há muitas semelhanças. Eu já havia abordado o caso Dreyfus ao
discutir o caso Pizzolato, o petista do Banco do Brasil condenado no
mensalão por algo que não fez, não podia ter feito, não tinha sequer
instrumentos para fazê-lo.
Hoje eu vejo que o verdadeiro Dreyfus contemporâneo não é Pizzolato, mas o PT.
Arendt aponta o caso Dreyfus como uma das feridas nunca totalmente
fechadas da história política e judicial da França, e que serviriam de
caldo cultural para a explosão do nazismo europeu.
Assim como o mensalão e agora o petrolão, o caso Dreyfus envolveu uma conspiração entre mídia e judiciário.
A mídia francesa da época, assim como a brasileira, atiçou todos os
preconceitos e rancores do populacho (mob, em inglês) contra Dreyfus e
seus defensores, que de início eram uma minoria ilustre.
Também a França vivia sob o impacto de um grande escândalo de corrupção no parlamento: o escândalo do Canal de Panamá.
Um jornal reacionário e antissemita alcançara uma tiragem recorde
após denunciar o clamoroso escândalo de propinas pagas a parlamentares e
lobistas, como “comissão” aos financiamentos que o Estado francês dava à
Companhia do Panamá.
Igualzinho hoje. A Companhia do Panamá era um pool de empreiteiras,
que viviam do dinheiro do Estado, assim como as nossas. Para ser justo,
assim como todas as empreiteiras do mundo.
Os deputados franceses haviam encontrado os métodos que deveriam pôr
em prática. Nas palavras de Arendt: “a política correta era a defesa de
interesses particulares e corporativos, e o método adequado seria a
corrupção. Em 1881, a tramoia tornou-se a única lei”.
Entretanto, não foram os deputados que tomaram a iniciativa de usar o
caso Dreyfus como uma estratégia de poder. Eles surfariam na onda,
satisfeitos de ver a atenção pública olhar para outro lado. A mesma
coisa vale para a maioria dos nossos corruptos. É reconfortante para
eles ver a mídia apontando o dedo apenas para o PT.
No caso dos empreiteiros presos, o juiz já sinalizou: apontou o dedo
para o PT, está solto. Não apontou: prisão por tempo indeterminado, com
ameaças veladas contra toda a família.
Na França, o golpe contra Dreyfus veio dos estamentos burocráticos e
meritocráticos, onde a elite descendente do ancien regime, falida pelas
revoluções, havia se refugiado, e onde procuravam se vingar pela perda
de seus privilégios. No caso francês: o exército e o judiciário. No
Brasil, o MP, PF e Judiciário, também histórico refúgio de antigas e
decadentes elites nacionais.
A mídia, como sempre, cumpriu o papel de instrumento da classe
dominante, ontem e hoje. A Companhia de Jesus, os jesuítas, que
dominavam o alto clero da época, foi a principal articuladora política
do movimento contra Dreyfus. Nossos “jesuítas” de hoje são os tucanos e
moralistas de ocasião da mídia.
Arendt lembra que os socialistas demoraram a se enfileirar ao lado
dos “dreyfusard” (os que defendiam Dreyfus), e mesmo assim vieram
divididos, porque viam nisso apenas uma escaramuça da alta burguesia.
Apenas quando Clemenceau convenceu o grande líder socialista Jean
Jaurès, de que a injustiça praticada contra um era uma injustiça contra
todos, é que este último aderiu à causa, e mesmo assim, não com os
argumentos que, segundo Arendt, seriam os mais corretos, a defesa da
justiça e da dignidade humana, mas com argumentos classistas, visto que
aristocracia e alto clero lideravam o movimento contra Dreyfus.
O erro dos socialistas franceses me parece o mesmo cometido pelo PT, por ocasião do mensalão.
E a mesma desconfiança dos trabalhadores franceses, contra um
problema que parecia se limitar a uma divergência doméstica das classes
dominantes, vimos também surgir entre os petistas e na esquerda em
geral, quando estes se defrontaram com a Ação Penal 470 e, agora, com a
Operação Lava Jato.
Tanto o mensalão quanto o petrolão levaram figuras dominantes da política e do capital à cadeia.
O que foi vendido pela mídia brasileira como um “avanço” democrático,
não passa de uma tática recorrente do arbítrio para empolgar o
populacho, desde os primórdios da história. Todas as ditaduras,
explícitas ou disfarçadas, fazem isso.
É o que tentam fazer agora novamente.
As próprias elites entendem que é preciso sacrificar alguns de seus
mais queridos empregados, a fim de assegurar o poder no longo prazo.
Por ocasião do julgamento da Ação Penal 470, os colunistas da grande
mídia, e depois até mesmo alguns ministros do supremo, batiam na tecla
que não era possível decepcionar a expectativa da “opinião pública”.
Sequer escondiam a descarada solapagem do Estado Democrático de
Direito, em nome de uma vulgar e covarde rendição a um populacho
manipulado pela mídia.
Arendt explica a diferença entre esta “opinião pública”, ou
“populacho”, e o povo propriamente dito. O populacho é a representação
dos setores frustrados de todas as classes sociais. Pobres, classe média
e ricos insatisfeitos com a representação política, prontos a aderirem a
qualquer aventura golpista: este é o populacho de todas as eras. Eles
têm uma opinião instável, cambiante, mas com uma propaganda bem
planejada, é possível orientá-lo na direção certa, enquanto este for
útil.
Não é difícil para a mídia, num segundo momento, descartar o
populacho, com desprezo, tratando-o como uma massa desorganizada e
inculta.
Onde estão os protestos inflamados de juristas e ministros do supremo contra as arbitrariedades da polícia?
Quando prenderam Daniel Dantas, e a PF começou a realizar uma série
de operações para combater sobretudo crimes financeiros e sonegação
(Daslu e automóveis de luxo, lembram?), um grito desesperado tomou conta
das elites, através da mídia: é o Estado Policial!
Gilmar Mendes aparecia diariamente nos jornalões para bradar contra
isso, e até mesmo urdiu uma trama, em parceria com o senador Demóstenes
Torres (mais tarde defenestrado por corrupção), para inventar um grampo
de seu telefone, e criar um escândalo que iria derrubar o diretor da
Polícia Federal, Paulo Lacerda.
A derrubada de Paulo Lacerda representa um momento chave da política
brasileira contemporânea, porque, aparentemente, é a partir daí que a
Polícia Federal toma um caminho diferente: ao invés de investigar a
sonegação das grandes empresas, que contam com a cumplicidade da mídia
(também grande sonegadora, como vimos), a PF voltou suas baterias contra
agentes do Estado. E aí ela, a PF, passa a contar com entusiástica
cumplicidade da mídia.
Não há nada de errado na PF se voltar contra agentes do Estado. Ao contrário, é até saudável.
Errado é a PF entrar no jogo da mídia, promovendo vazamentos
seletivos e espetáculos que visam apenas interferir no debate
político-partidário.
Também já especulei sobre a tendência do Ministério Público em
desenvolver um sentimento de oposição ao Executivo – um sentimento que é
primo de seu orgulho corporativo.
Entretanto, se o Executivo não reage, tanto a PF quanto o MP avançam o
sinal, e transformam-se em instrumentos de arbítrio, sob forte
influência da mídia.
*****
Para piorar o quadro, o governo permanece num silêncio aterrorizante.
Uma mera intervenção oral de Dilma, ou de seu ministro da Justiça,
nem que fosse para pontuar o debate com algum comentário irônico ou
crítico sobre a violência judicial cometida contra o tesoureiro de seu
próprio partido, João Vaccari Neto, ajudaria a dar algum equilíbrio à
crise política.
(PS: Menos mal que o ministro da Comunicação, Ricardo Berzoini, manifestou-se sobre o tema).
Mas essa postura vem desde a Ação Penal 470. Ao sacrificarem Henrique
Pizzolato, por exemplo, o partido sacrificou o próprio Estado de
Direito.
Assim como Dreyfus era ridicularizado por seus adversários, e mesmo
por seus amigos, porque ostentava arrogantemente a riqueza de sua
família e a quantidade de dinheiro que gastava com mulheres e bebidas,
assim os “amigos” de Pizzolato se negaram a defendê-lo porque ele usava
“ternos caros”, gravatas borboleta, e conseguira juntar dinheiro para
comprar imóveis.
A AP 470 fez escola. O “Estado de Direito” começou a ruir ali, e não agora, com o depoimento “coercitivo” de João Vaccari Neto.
Todos os métodos usados na frente midiática durante o mensalão estão
sendo repetidos agora. Os jornais criaram uma nova alcunha, o
“petrolão”, que já se tornou aba ou chapeu em todos os portais.
Jamais a nossa mídia criou alcunha ou abas editoriais para a compra
de votos para a reeleição de FHC, para o trensalão, para o Banestado, ou
pelo menos nada que durasse muito.
*****
O PT anuncia que “entrará na Justiça” contra Pedro Barusco, pela denúncia contra o partido.
Está certo, tem que fazer isso mesmo.
Porém mais uma vez o partido foge da política, única instância onde é
um protagonista, e tenta se refugiar sob as asas do judiciário, onde a
mídia tem mais influência.
A política é o único palco onde o PT pode ganhar, porque é a legenda
com maior número de filiados no país, várias vezes superior a todas as
outras. Seus presidentes, sobretudo Lula, ainda são as figuras públicas
mais populares da nossa história, até hoje. É o partido com maior número
de deputados na Câmara Federal. O partido que tem mais ministros,
incluindo o Ministério da Comunicação e da Justiça. Tem a presidência da
república. É o único partido que tem uma militância orgânica de massa,
real e digital.
Por que o PT foge da luta política?
A impressão que eu tenho é que o PT esqueceu o que é fazer política.
Até mesmo alguns militantes esqueceram o que é fazer política. Alguns
falam, incluindo Lula: temos que ir às ruas, como se bastasse vagar
perdido por aí, sem saber o que dizer, para obter qualquer resultado
prático na política.
A política, numa democracia, é, antes de tudo, uma luta intelectual, que deve ser travada através da persuasão.
Para isso, é preciso investir em cultura.
Somente a cultura pode salvar a política brasileira.
A cultura é o deus ex-machina que pode nos salvar da barbárie para onde a mídia está nos arrastando.
Por exemplo, nos EUA, existem centenas de filmes e livros sobre os
arbítrios da mídia. A começar pelo primeiro filme do cinema moderno:
Cidadão Kane, uma terrível denúncia contra o monopólio e a concentração
de poder em mãos de poucos.
Aqui, são raríssimos as obras de arte que abordam a questão da mídia,
apesar dela ser, desde os anos 50, o principal ator político do país.
A campanha contra a criação da Petrobrás, o suicídio de Vargas, as
marchas da família, o golpe de 64, a sustentação da ditadura, o poder
das oligarquias nordestinas, o antipetismo do sudeste, mensalão,
petrolão, a mídia é sempre o protagonista.
Por que não são escritos ou filmados livros, séries, filmes, novelas sobre o tema?
Por que o governo, principal patrocinador da cultura, nunca abriu editais voltados especificamente para a crítica de mídia?
Alô, Juca, agora não podemos mais perder tempo!
O governo, por sua vez, encontra-se paralisado, indeciso, com o pior sistema de comunicação dentre todos os poderes.
O Legislativo, Câmara e Senado, tem ótimos portais, com várias TVs, e
os próprios parlamentares agem como porta-vozes de si mesmos.
O MP criou até uma historinha do mensalão para crianças…
Já o Executivo tem uma comunicação dispersa, fragmentada, negligente.
Todos os presidentes da república, em todo mundo, externam
pontos-de-vista e intervêm constantemente no debate político. Falam e
escutam, junto com seus ministros. Aqui, não.
Há dias em que os únicos representantes do Estado que falam de
política na mídia são ministros do Supremo, ou seja, justamente aqueles
que são proibidos pela Constituição de exercer atividade
politico-partidária.
E agora toda a política nacional volta a girar em torno de um juiz
tratado como heroi pela mídia – já ganhou até o prêmio da Globo – e
cercado por todos os lados de conspiradores golpistas.
A democracia brasileira se vê, mais uma vez, a mercê de arbítrios judiciais e conspirações midiáticas.
O problema da política é a sua dinâmica desesperada. Tudo acontece rápido demais para que o bom senso prevaleça.
A análise ponderada, objetiva, fria dos fatos, nunca chega a tempo,
de maneira que os homens se tornam como que cobaias de si mesmos. No
médio e longo prazo, as coisas tendem a se equilibrar, mas quantas
revoluções, guerras, tragédias, golpes, não foram necessários para
chegarmos onde chegamos?
Enfim, dá vontade de forçar o relógio da história em alguns anos,
quiçá décadas, para vermos logo o que será do país quando as novas
gerações, mais saudáveis, mais bonitas, melhor alimentadas, mais
escolarizadas, mais livres, tão distantes da neurastenia forçada e
hipócrita do antipetismo midiático, ainda mais distantes desse
conservadorismo quase sociopata de alguns medalhões do jornalismo, o que
será do Brasil quando esta geração tomar o poder?
(Este texto foi encontrado na caixa de comentários do TIJOLAÇO (http://tijolaco.com.br/blog/globo-mandou-remover-todas-citacoes-a-fhc-em-reportagens-sobre-lava-jato/). A matéria é do ano passado, contudo, atualíssima, trata da conivência midiática com o tucanato e a burguesia brasileira. Mais precisamente, o comentário trata, inicialmente, da intimação e depoimento de Vaccari a Sérgio Moro. O autor, Andre, não foi encontrado).
(Este texto foi encontrado na caixa de comentários do TIJOLAÇO (http://tijolaco.com.br/blog/globo-mandou-remover-todas-citacoes-a-fhc-em-reportagens-sobre-lava-jato/). A matéria é do ano passado, contudo, atualíssima, trata da conivência midiática com o tucanato e a burguesia brasileira. Mais precisamente, o comentário trata, inicialmente, da intimação e depoimento de Vaccari a Sérgio Moro. O autor, Andre, não foi encontrado).
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